O LEGADO DO ABUSO
A gravidade das consequências do abuso em termos da organização psíquica são quase sempre muito sérias mesmo que a vítima não tenha consciência disso, pois é muito comum que o abusado negue ou reprima os sentimentos decorrentes do ato abusivo. No entanto, é importante salientar que as características citadas neste tópico são consequências possíveis e observadas nos estudos e nos atendimentos de pessoas vitimizadas pelo abuso, no entanto não são similares nos diferentes casos. Algumas pessoas conseguem, através de uma capacidade elaborativa maior, apresentar um mundo mental mais integrado que outras.
2.2.1 Efeitos no desenvolvimento infantil
É sabido que é durante a infância que o ser humano desenvolve sua base emocional. É quando ele se forma fisiologicamente e se coloca socialmente. A noção de self (Numa aceção geral, entende-se por self aquilo que define a pessoa na sua individualidade e subjetividade, isto é, a sua essência. O termo self emportuguês pode ser traduzido por "si" ou por "eu", mas a tradução portuguesa é pouco usada, em termos psicológicos. ) da criança se molda através de seus relacionamentos com as outras pessoas. Apesar de as experiências alterarem o comportamento de adultos, elas podem literalmente moldar uma criança.
O abuso sexual, principalmente o que se instala sem violência e sim com sedução, traz sensações fisiológicas de excitação que a criança não tem estrutura para elaborar psiquicamente. Isso gera uma hiperexcitação que pode se transformar em ansiedade ou hipersexualização.
No abuso sexual da criança esta não pode evitar ficar sexualmente estimulada e essa experiência rompe desastrosamente a sequência normal da sua organização sexual. Ela é forçada a um desenvolvimento fálico ou genital prematuro, enquanto as necessidades desenvolvimentais legítimas e as correspondentes expressões mentais são ignoradas e deixadas de lado.
Qualquer vivência cuja elaboração e assimilação internas não são possíveis se caracteriza como um trauma. Com esse entendimento, podemos considerar o abuso sexual como um evento traumático para a grande maioria de suas vítimas.
Os sintomas mais comuns apresentados por uma criança vítima de abuso sexual são:
Transtorno de stress pós-traumático: é citada como a psicopatologia mais frequente relacionada ao abuso sexual. Seus sintomas mais usuais são hipervigilância, lembranças ou imagens intrusas com vivência de muita angústia, dificuldade de concentração, paralisia na iniciativa, irritabilidade, dificuldades para dormir e pesadelos, lapsos de memória, sentimentos de desamparo e resposta exagerada de sobressalto;
Transtorno de ansiedade: Uma das causas mais frequentes geradoras de ansiedade na criança é a “sensação de desamparo causada pelo sentimento de desproteção diante de situações perigosas ou sentidas como difíceis demais para lidar”assim como vividas no abuso sexual. Uma criança exposta a situações estressoras demais, não conseguem adquirir estratégias de enfrentamento adequadas e com isso desenvolvem transtornos de ansiedade mais facilmente.
Depressão: juntamente com o stress pós-traumático, é considerada o sintoma mais comum decorrente de abuso, tanto na infãncia, quanto na adolescência. É decorrente de sentimentos de desesperança, desespero, desamparo, impotência e auto-acusação. A visão de mundo da criança fica distorcida e alguns casos apresentam inclusive ideações suicidas já na infância.
Dificuldades interpessoais: incluindo retraimento, isolamento social, dificuldade em confiar e relacionamentos superficiais.
Raiva e hostilidade reprimidas: que podem trazer irritabilidade constantes ou ‘explosões’ de raiva ou atos agressivos trazidos pela inabilidade em lidar com tais sentimentos;
Episódios dissociativos: momentos de desconexão com a realidade, que podem durar de alguns segundos a várias horas. Essa ruptura acontece pois a experiência é assustadora demais para que o ego consiga integrá-la, que então se dissocia da vivência para se proteger.
Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade;
Queixas somáticas: dentre os quais sensação de mal estar geral, falta de ar e problemas gástricos são os mais comuns. Encoprese e enurese são comuns em crianças menores, principalmente se sofreram penetração anal;
Dificuldades no sono: recusa em se deitar, insônia ou pesadelos principalmente quando o abuso ocorreu no meio da noite;
Comportamento sexual anormal: as crianças e os adolescentes podem apresentar condutas hipersexualizadas (masturbação compulsiva, introdução de dedo ou objetos na vagina e no ânus, conhecimento sexual inadequado para a idade, pedido de estimulação sexual, excitação por mero contato social e, na adolescência, promiscuidade) ou reações fóbicas e extrema inibição relacionada à sexualidade (reações fóbicas às pessoas do sexo do abusador, evitação em se trocar em vestiários de escola, ou recusa em ir à piscina, pois a nudez total ou parcial os remetem à situação abusiva);
Transtornos alimentares: anorexia nervosa ou bulimia (esta última mais comum na idade adulta);
Baixo aproveitamento escolar: decorrente da depressão ou da dificuldade de concentração e memória;
Medo: pode aparecer de várias formas e em várias intensidades representando o medo da repetição do trauma.
Culpa e vergonha: sentimentos típicos em vítimas de abuso independentemente do grau de cooperação da criança no ato. A criança assume equivocadamente a responsabilidade pelo abuso e generaliza o sentimento, levando a se culpar por qualquer situação negativa que possa ocorrer em sua vida. O abuso como “síndrome do segredo” , a auto-condenação por ter experimentado algum prazer físico durante o abuso e a vergonha por não ter conseguido evitar o abuso são as raízes desses sentimentos. A criança também pode supor ser responsável por ser desejada pelo agressor, idéia que muitas vezes é confirmada pela família quando da revelação.
Baixa auto-estima: com relação à auto-imagem, Perrone e Nannini (1998) comentam que a vítima do abuso carrega a sensação constante de que, haja o que houver, será sempre indigna, suja e depreciável pela situação que sofreu.
Revitimização: a incapacidade de dizer ‘não’ já presente como traço de personalidade da criança abusada, que a tornou vítima ‘fácil’, ou tal incapacidade criada pela paralisia trazida pelo trauma (há divergências entre os autores em relação a essas duas idéias), traz uma dificuldade em se proteger e a criança pode novamente se ver vítima de abuso.
Com o abuso, as crianças adquirem um senso de self distorcido, que pode trazer sentimentos de culpa e desvalia. As crianças tendem a se culpar por tudo o que acontece a elas com muita facilidade. Mesmo estando assustadas ou tendo sido machucadas no ato do abuso, elas frequentemente não contam a ninguém e pedem ajuda por medo de ser responsabilizadas, ou por terem sido ameaçadas caso contassem. Assim, elas ficam sozinhas para lidar com sentimentos difíceis como traição, medo, culpa, vergonha, confusão e raiva e isso pode alterar seu desenvolvimento e todos os seus relacionamentos futuros .
Esta solidão na vivência do abuso força a criança a ter que lidar com efeitos do stress pós-traumático e com isso desenvolver habilidades de enfrentamento inadequadas ou primitivas que vão tender a ser utilizadas nas situações de dificuldade no futuro, tais como dissociação, comportamentos autodestrutivos ou fóbicos.