VÍTIMA MASCULINA
Praticamente tudo o que é dito sobre os efeitos do abuso sexual
vale para ambos os sexos. No entanto, há alguns efeitos
específicos para os meninos vitimas de abuso que devem ser
levado em consideração.
Homofobia: quando o menino é abusado por um homem, pode
ficar confuso em relação à sua identidade sexual e uma das
perguntas que o persegue como pano de fundo ao longo de sua
vida é ‘Será que me tornei gay em decorrência do abuso?’. Essa
crença pode gerar pânico ou enojamento de si próprio, além do
que já é sentido normalmente pelo abuso em si.
Banalização: nossa sociedade machista banaliza o abuso do menino quando o abusador é uma mulher. Este é visto normalmente como tendo sido “sortudo”, o que é uma visão absolutamente distorcida e gera, além de idéias errôneas e preconceituosas, uma contradição para o menino: se ele gostou da experiência, então não pode ser considerado abuso e se ele não gostou, então é homossexual. Vale salientar aqui que mesmo não percebendo a experiência como tendo sido abusiva, os meninos apresentam sequelas a curto e longo prazo.
Solidão: ainda fruto de nossa sociedade machista e dos estereótipos masculinos, os meninos mais velhos podem achar que seu pedido de ajuda é sinal de fraqueza e achar que as pessoas esperem que ele saiba lidar com o assunto sozinho.
‘Síndrome do Vampiro’: assim é chamada por alguns autores a possibilidade de um menino vítima de abuso sexual tornar-se abusador. Este certamente é um risco que tem que ser levado em consideração e levado a tratamento, pois muitos meninos vítimas realmente se tornam perpetradores. No entanto a realidade é que somente uma pequena proporção dos meninos abusados torna-se abusador, e se essa informação for levada de uma forma determinista, pode impactar a vítima interna e externamente. Muitos homens temem tornarem-se abusadores e isso pode gerar uma fobia tão grande ao ponto de evitar contato com crianças ou trazer o risco de suicídio. O preconceito pode vir também da própria família após saber do abuso, rejeitando-o por medo da repetição. Há risco de meninas também tornarem-se perpetradoras, no entanto, como o número é significativamente menor), fala-se muito pouco sobre essa possibilidade.
2.3 OS CUSTOS E AS CONSEQUÊNCIAS PARA O AMOR: A FERIDA INVISÍVEL
Eles podem não parecer intocáveis; de fato, podem parecer muito atraentes. Mas muitas pessoas sentem-se intocáveis;
por dentro, estão famintas de aceitação e amor.
O abuso sexual tem um efeito negativo -tanto para o homem quanto para a mulher- na habilidade de estabelecer e manter relacionamentos íntimos saudáveis na vida adulta. Trata-se de uma violência que envolve uma ação humana, diferente de um trauma não-interpessoal como os traumas decorrentes de doença ou acidente natural. Por se tratar de uma violência interpessoal, o abuso sexual pode trazer conseqüências profundas e prolongadas na forma da vítima se relacionar futuramente e em suas percepções e respostas a relacionamentos de autoridade e poder.
É uma ferida na emoção, uma ferida no amor, originadas no profundo sentimento de desconfiança no ser humano em geral. Com isso, “as vítimas de abuso sexual não conseguem entregar-se ao corpo e ao amor” , o que significa que sua entrega amorosa e sexual fica comprometida e com isso diminui grandemente as chances de se realizarem afetivamente em suas vidas.
Mesmo abusos extrafamiliares que não envolvem pessoas de vínculo próximo podem deixar feridas nas relações interpessoais, nos casos em que a criança se sente negligenciada pelos cuidadores que a deixaram exposta ao abuso (quer esta seja uma percepção real ou não), ou até mesmo quando estes não percebem os sintomas de que ela está sendo abusada, situação em que a criança pode inferir que eles aceitam a situação ou que não a amam suficientemente para cuidar adequadamente delas ou notar os sinais da violência.
2.3.1 Distúrbios psiquiátricos e psicológicos
Os distúrbios psiquiátricos e psicológicos, apesar de serem sequelas intrapessoais que afetam diretamente a vida emocional pessoal da vítima, acabam por ter efeitos indiretos interpessoais, afetando os relacionamentos amorosos. É nos relacionamentos íntimos mais próximos que vivenciamos toda a gama de sentimentos presentes na afetividade humana, e se um dos membros apresenta algum transtorno que afete sua organização emocional, certamente sua relação amorosa será afetada também.
A inabilidade da vítima em estabelecer relações de apego saudáveis com seus parceiros é que traz como consequência a depressão, e não a história de abuso por si só. Com esse entendimento, eles sugerem que relacionamentos íntimos estáveis e acolhedores podem proteger os sobreviventes contra os sintomas na vida adulta.
Os sintomas básicos na criança vítima de abuso e no adulto sobrevivente, são parecidos. No entanto diferem no sentido de que o adulto está menos conscientemente preocupado com o evento traumático pelo tempo transcorrido, pela falta de perigo real atual e pela aquisição de defesas emocionais mais eficientes. Novos sintomas aparecem ao longo da adolescência e vida adulta, tais como drogadição, transtornos alimentares e distúrbios de personalidade. Estas são consideradas tentativas mal adaptadas de se lidar com o trauma do abuso e com as memórias conscientes ou não que tendem a vir à tona mais facilmente diante do estabelecimento de relacionamentos íntimos e sexuais na vida adulta.
Os sintomas mais comuns encontrados na vida adulta são:
Transtorno de Ansiedade: sobreviventes de abuso sexual infantil, têm cinco vezes mais probabilidade de desenvolver algum tipo de desordem de ansiedade tais como ansiedade generalizada, fobias, transtorno do pânico e transtorno obsessivo compulsivo.
Transtorno de stress pós-traumático complexo: os sintomas de stress pós-traumáticos tão frequentes na infância de crianças abusadas, transformam-se em transtorno de ansiedade generalizada na vida adulta, ou podem reaparecer a qualquer momento como transtorno de stress pós-traumático complexo e grave quando alguma situação de similaridade com o abuso engatilha os sintomas.
Depressão: alguns autores citam a depressão como o sintoma mais comum na vida adulta decorrente de um trauma de abuso. Aparece seguido de baixa auto-estima, sentimentos de alienação e isolamento e auto-imagem negativa. 60% das mulheres vítimas de incesto relatavam uma auto-imagem negativa, comparadas com 10% do grupo de controle sem história de incesto.
Auto-agressão e ideação suicida: 79 por cento de indivíduos com comportamentos auto-agressivos relatavam histórico de abuso sexual na infância. Os sobreviventes de abuso sexual apresentaram comportamentos suicidas de 20 a 70 vezes mais que o grupo controle.
Dissociação:O abuso sexual e o abuso físico muito intensos na infância são os maiores fatores de predisposição para o desenvolvimento de transtorno dissociativo na vida adulta. Há casos em que o transtorno dissociativo desenvolve-se de forma tão intensa que pode ser confundido com esquizofrenia.
Transtorno de personalidade borderline: está fortemente associado ao abuso sexual. É como se houvesse uma incorporação gradual dos sintomas primários do trauma do abuso tais como depressão, labilidade emocional, impulsividade, ambivalência, ansiedade de separação, cisão da personalidade, dificuldade em confiar nas pessoas e medo de intimidade na estrutura de personalidade , vários estudos relacionando abuso sexual na infância e o transtorno de personalidade borderline e frisa a maior ocorrência de tais sintomas em casos de abuso que incluíram negligência de cuidados adequados por parte dos pais (ou quando os mesmos foram os abusadores). A inconsistência de cuidados primários é um precursor da vinculação emocional inconsistente exibida em adultos com transtorno borderline.
Sintomas histéricos: O abuso sexual infantil é a maior causa de sintomas histéricos na vida adulta. As vítimas que reprimem a memória do trauma podem tê-las emergindo do inconsciente na forma de sintomas histéricos.
Abuso de substâncias: é uma sequela comum entre vítimas de abuso na infância, que normalmente aparece durante a adolescência ou na vida adulta. O abuso de álcool ou drogas pode vir para anestesiar a ansiedade advinda dos primeiros contatos sexuais na adolescência que trazem a memória do abuso, ou para aliviar os sintomas complexos de ansiedade e depressão que tais pessoas vivem. Uma constatação de que quanto mais alguém sofreu abusos na infância, maior é o número de suas dependências depois de adulto –não só dependência química, mas também alimentar, sexual, etc.
Somatizações: estas vêm como uma forma de deslocamento da ansiedade e da dor trazidas pela experiência de abuso. Aparecem como dores somáticas e doenças psicossomáticas. Muito comum entre as mulheres vítimas de abuso é a dor pélvica crônica sem causa fisiológica e candidíase crônica.
Distúrbios alimentares: a literatura mostra uma forte relação entre mulheres bulímicas e anoréxicas e o abuso sexual. A anorexia pode aparecer como uma forma de evitar a identidade sexual adulta, fazendo com que haja um atraso no aparecimento de sinais físicos e psicológicos da sexualidade feminina. Já a os episódios de vômito relacionados à bulimia podem simbolizar o clima de segredo relacionado ao abuso e a obesidade aparece também como uma barreira contra a sexualidade.
Muitos dos sintomas acima acabam por se tornar egossintônicos e considerados como traços de personalidade, ficando assim dissociados do evento do abuso, não sendo mais considerados sintomas do trauma. Isso normalmente dificulta o diagnóstico em psicoterapia de adultos sobreviventes de abuso na infância.
2.3.2 Dificuldades no relacionamento amoroso
As conseqüências do abuso sexual discutidas nesse tópico, diferente das anteriormente tratadas acima, são sutis e encobertas. São feridas invisíveis que podem passar despercebidas como sendo sintomas de um trauma vivido anteriormente, mas ao mesmo tempo são os efeitos mais penetrantes e significativos do abuso sexual na infância. Ser violentado por outro ser humano pode trazer consequências para todos os relacionamentos futuros. No entanto, neste trabalho iremos focar o relacionamento de casal, que é certamente a interação interpessoal mais desafiadora para um sobrevivente de abuso.
Follette (1991) reporta pesquisas que mostram que mulheres vítimas de abuso sexual apresentam maior probabilidade de se divorciar e que seus relacionamentos são frequentemente ‘tempestuosos’ e vistos como infelizes. Sobreviventes de abuso relataram menor satisfação nos relacionamentos, habilidades de comunicação mais empobrecidas e menor grau de confiança em seus parceiros, trazendo dificuldades em dividir confidências e discutir preocupações pessoais dentro do relacionamento. Em estudos feitos por Kernhoff et al. , mulheres vítimas de abuso relataram conflitos interpessoais mais frequentemente que o grupo de controle.
Por fim, pesquisas que apontam que mulheres abusadas têm mais probabilidade de nunca se casarem do que as não abusadas. Também mostram dados de que os indivíduos abusados são mais moderadamente introvertidos e com estilos de vida mais isolados em comparação com o grupo de controle. Outras pesquisas apontadas por eles trazem relatos de falta de envolvimento emocional e um sentimento de isolamento em relação às pessoas, um senso de alienação e introversão social.
A experiência de trauma sexual na infância pode levar a vítima a construir uma representação interna de mundo que é caracterizada por sentimentos de ameaça, traição e violência. Essa representação de mundo inevitavelmente será levada para seus relacionamentos amorosos criando expectativas constantes de violência, traição e rejeição. Devido a essa representação interna, os sobreviventes de abuso desenvolvem um padrão de apego inseguro na vida adulta. Os dois estilos de apego inseguro desenvolvidos por vítimas de abuso sexual são: apego ansioso (associado à ansiedade, confusão, dependência, ciúme e medo de ser abandonado ou de não ser amado) e apego evitativo (associado ao medo de intimidade, inibição social, falta de assertividade, e uma combinação de traços de evitação com preocupação.
O estilo de apego ansioso pode trazer uma tendência exagerada da vítima de abuso em focar suas atenções mais para o universo da relação do que nas suas experiências pessoais. Com isso, ela diminui seu sentido de identidade própria e cria uma hipervigilância nos relacionamentos, como se estivesse constantemente procurando por sinais de perigo de abandono ou traição. Esta hipersensibilidade é muito prejudicial ao relacionamento levando a vítima a interpretar as mudanças e nuances naturais de qualquer relação como extremamente significativas .
Já a pessoa que desenvolve o apego evitativo apresenta sérias dificuldades de envolvimento emocional, e muitas vezes não se mostra capaz de um contato afetivo. Quem convive com estas pessoas tem a sensação de que a intimidade e a afetividade delas é absolutamente inacessível, vestindo uma máscara de frieza e endurecimento, que no fundo é uma defesa psíquica despertada pela violência interpessoal operando como forma de sobrevivência e defesa contra o sofrimento vividos.
Na observação clínica normalmente nos deparamos com uma maior tendência a encontrar mulheres apresentando um padrão de apego ansioso e homens apresentando apego evitativo. Muito comum também é nos defrontarmos com o casal típico em que um mostra um padrão ansioso e dependente e o outro se mostra evitativo. Não é difícil imaginarmos a enormidade dos problemas e conflitos que um casal com esse funcionamento tem que enfrentar.
Outro aspecto importante a citarmos é que o abuso sexual, por gerar fortes sentimentos de desamparo e impotência na vítima, cria um profundo senso de fragilidade em suas vítimas. A forma mais comum desses sentimentos se manifestarem, tanto no homem quanto na mulher que experienciaram abuso sexual na infância, é através do desenvolvimento de um comportamento controlador. Tal forma de comportamento pode se tornar o padrão de funcionamento da pessoa, trazendo também sérias dificuldades no relacionamento afetivo. Tais pessoas são vistas como egoístas, mandonas e controladoras, quando na verdade estão tentando se proteger.
Vítimas de abuso incestuoso podem também transferir dificuldades vividas em sua família de origem para seu relacionamento atual. Como nos relembra Follette (1991), nas famílias incestuosas há uma dificuldade em se estabelecer fronteiras firmes entre os subsistemas familiares e como consequência disso, a pessoa abusada entra no relacionamento adulto com pouca ou nenhuma noção de como é um funcionamento familiar e de casal saudáveis.
Finalmente, outro aspecto digno de nota é a ansiedade desenvolvida por muitas mulheres vitimizadas a fim de encontrar um parceiro. Na verdade essa ansiedade se torna muitas vezes uma busca desesperada de parceiros que possam magicamente suturar o vazio deixado pela experiência traumática. Em relação a isso, Lowen comenta que:
Enquanto essas mulheres continuarem obcecadas por sua busca por um homem que as ame e proteja, serão usadas e sofrerão abuso. Seus relacionamentos com os homens não podem dar certo. Os homens reagem a elas como objetos sexuais, não como pessoas sexuais, porque essas mulheres não se consideram como pessoas. Seu senso de identidade está seriamente comprometido pelo abuso sexual.
Dificuldade com intimidade: a maioria tem como queixa a frustração e a dor decorrente das tentativas de aproximação emocional ou física com suas parceiras. Eles se sentem ‘escanteados’ pelas parceiras o tempo todo ou periodicamente. Mesmo compreendendo a necessidade de fechamento de suas parceiras em conseqüência do trauma, a vivência de dor e tristeza pela falta de aproximação é constante. Aqui vale frisar que apesar de inconscientemente esses homens também poderem apresentar medo de intimidade, que ficam projetados na parceira, a experiência consciente deles é de muita dor.